Lei do direito autoral

Por Pablo Ortellado
Depois de quatro anos de discussão e debate com os setores interessados, o governo finalmente publicou o projeto que reforma a lei de direito autoral (disponível em:
http://www.cultura.gov.br/consultadireitoautoral). Embora com atraso, a publicação ainda assim deve ser louvada. Abaixo, proponho uma primeira leitura dos principais pontos positivos e negativos do projeto da perspectiva do acesso ao conhecimento.
Pontos positivos:
1) “Numeração”
O projeto introduz, no seu artigo 30, a exigência de controle de cópias (seja a numeração dos exemplares ou o controle eletrônico) que permitirá que o autor monitore a quantidade de cópias produzidas. Hoje, é muito difícil para um escritor ou intérprete controlar a quantidade de discos produzidos ou livros impressos e evitar que seja enganado pelo seu editor ou gravadora. Com esse controle de cópias, a fraude se torna um pouco mais difícil.
2) Cópia privada
O texto, no inciso I do artigo 46, reintroduz na nossa lei a cópia privada (que já existia na lei de 1973). Assim, finalmente passa a ser autorizado fazer uma cópia extra, de backup ou de proteção dos bens culturais legitimamente adquiridos. No entanto, a lei mantém uma redação muito ambígua e ruim, quando fala da “a reprodução, por qualquer meio ou processo, de qualquer obra legitimamente adquirida, desde que feita em um só exemplar e pelo próprio copista, para seu uso privado e não comercial”. A exigência de que seja feita pelo próprio copista e que esteja restrita a um exemplar simplesmente não faz sentido. Uma pessoa que adquire um livro e quer tirar uma fotocópia para riscar sem danificar o original terá que ter uma copiadora em casa? Não poderá solicitar a uma copiadora para fazer a cópia? Essa ambigüidade de redação que já está no inciso II da lei em vigor já dá muita disputa interpretativa. E porque a restrição a uma única cópia para uso privado do copista? E se o dono do exemplar adquirido quiser compartilhar a cópia com a sua família? No nosso exemplo, marido e mulher que queiram cópias para não rabiscar o livro, terão que adquirir dois exemplares? Leis de outros países estendem o direito de cópia privada a familiares e outras pessoas do círculo íntimo do proprietário do exemplar e autorizam explicitamente mais de uma cópia. Se o objetivo é colocar de maneira inequívoca as práticas razoáveis na legalidade, o texto ainda pode ser melhorado.
3) Mudança de formato
No mesmo artigo 46, no inciso II, inclui-se o direito de quem adquire uma obra, de mudá-la de formato – ou seja, poderemos finalmente comprar um CD e transformá-lo em MP3 para tocar no Ipod, sem cometer um ilícito. A medida é muito boa, mas, novamente, a restrição para uso privado e não comercial é equívoca. Uma casa, na qual a família seja fã da mesma banda, poderá compartilhar cópias em MP3 produzidas a partir do mesmo original? A redação não deixa isso muito claro – e, por isso, seria melhor que ela copiasse a redação de outros países que explicitamente autoriza a cópia de mais de um exemplar e o compartilhamento no círculo íntimo do proprietário.
4) Peças, músicas e filmes na escola, em casa, nos cineclubes e nas igrejas
Os incisos VI e XV do artigo 46 autorizam a livre apresentação da peças, exibição de filmes e execução de músicas no ambiente escolar, no âmbito familiar, nos cineclubes e nas igrejas, desde que sejam gratuitas e sem finalidade de lucro. Com isso, coloca-se na legalidade um grande número de professores que utilizam filmes e músicas como material didático e as escolas que apresentam peças interpretadas pelos estudantes como exercício teatral. Passamos também a poder cantar “Parabéns para você” em festas domésticas sem o risco de sermos importunados pelo ECAD, as Igrejas podem executar livremente canções religiosas protegidas e os cineclubes podem exibir livremente seus filmes sem ameaças.
5) Reprodução para fins de preservação do patrimônio cultural
Outro dos grandes absurdos da atual lei passa a ser corrigido. O inciso XIII do artigo 46 passa a permitir que bibliotecas, museus e cinematecas façam cópias livremente para preservar o patrimônio cultural do país. Hoje, se uma cinemateca não localizar o titular do direito autoral e conseguir dele uma autorização, ela não pode, em tese, reproduzir o filme para preservá-lo – e o filme simplesmente se perderia.
6) Obras esgotadas
O inciso XVII do artigo 46 autoriza a livre cópia, sem finalidade comercial, de obras esgotadas. Esse é outro dos grandes absurdos da lei atual. Cerca de um terço de toda a base bibliográfica dos nossos cursos superiores está esgotada e as nossas bibliotecas não têm exemplares antigos para suprir a demanda. Com essa medida, nossos estudantes e professores poderão reproduzir as obras esgotadas para uso em sala de aula.
7) Uso educacional
O parágrafo único do artigo 46 passa a autorizar o livre uso de obras para fins educacionais, científicos e “criativos” desde que respeitem a chamada regra dos três passos que aparece no inciso II – ou seja, devem ser feitas “na medida justificada para o fim a se atingir, sem prejudicar a exploração normal da obra utilizada e nem causar prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores”. A medida é boa, mas a reprodução da regra dos três passos vai dar origem a interpretações conflitantes e muitas disputas no judiciário. Em tese, essa cláusula geral deveria ser uma salvaguarda para novas limitações não previstas, mas ela terá de dar conta de uma situação específica, muito bem prevista, a cópia de livros para uso educacional da universidade, sem finalidade de lucro, seja por meio da Internet, seja por meio da reprografia não comercial (nas universidades públicas). Seria muito melhor que a ambigüidade e o litígio judicial fossem evitados e tivéssemos uma limitação clara dizendo que a cópia sem finalidade comercial para uso educacional e científico é livre. Se incluíssemos um inciso específico para a educação, essa cláusula geral seria um bom complemento para incorporar usos públicos não previstos.
Paródia
O artigo 47 autoriza claramente a paródia, ampliando a liberdade de expressão para a crítica, inclusive humorística. Um grande avanço.
9) Licenciamento compulsório
O artigo 52B traz uma inovação: a licença compulsória de direitos autorais. O presidente da república passa a ter a prerrogativa de autorizar, quando requisitado, o licenciamento voluntário de obras esgotadas, de obras cujos detentores de direito criam obstáculos não razoáveis à exploração, de obras cujos detentores dos direito são desconhecidos (as chamadas “obras órfãs”) e de obras cujos detentores de direitos não autorizam a reprografia. A medida é inovadora e positiva, na medida em que permite que esses abusos sejam corrigidos por uma licença governamental. Como a licença compulsória de patentes, o efeito coibitivo de más práticas talvez seja mais eficaz que o uso efetivo do dispositivo.
10) Supervisão da gestão coletiva
Organizações de gestão coletiva (como o ECAD e as associações que o compõem) passam a ser fiscalizadas pelo poder público nos termos dos artigos 98, 98A e 98B. O governo responde assim a diversos atores do mundo da cultura, de criadores e radiodifusores a consumidores que reclamam da atuação destas associações que não divulgam seus procedimentos e processos e são muito pouco democráticas na sua gestão. O artigo 98B especificamente exige publicidade e transparência das associações de gestão coletiva.
11) Jabá
A prática do Jabá, o pagamento a um veículo de radiodifusão para executar uma música, passa a ser proibido pelo artigo 110B que o equipara a infração da ordem econômica prevista na lei 8.884 de 1994. Mais uma medida necessária para por fim a essa prática muito semelhante à corrupção que é praticada à luz do dia.
Embora o conjunto da proposta seja muito positivo, há alguns pontos que ainda estão ruins e que precisam ser modificados no processo de consulta pública:
1) Proteção de normas técnicas
O artigo 8o, inciso VIII, deixa de proteger as normas técnicas, medida excelente, mas observa que a medida se faz “ressalvada a sua proteção em legislação específica”. O que poderia significar essa ressalva? Um dos grandes absurdos que temos no atual cenário é que a ABNT reclama direitos autorais sobre normas técnicas. Se a norma técnica, como o nome diz, é um texto normativo, ela deve ser de livre difusão para que a sua normatividade seja eficaz. No entanto, a ABNT utiliza a venda das normas para se manter, o que gera situações descabidas, como a dos nossos estudantes não encontrarem na Internet as normas sobre citação ou atribuição de referências, sendo obrigados a comprá-las a preços proibitivos.
2) Prazo de proteção
O prazo de proteção do direito autoral permanece, segundo o artigo 41, nos inexplicáveis 70 anos após a morte do autor. Como o direito internacional obriga a “apenas” 50 anos após a morte do autor, não há motivo para não aproveitar a reforma e reduzir esse prazo de proteção absurdo. Recentemente, vimos o impacto positivo que a queda em domínio público de uma obra pode trazer, quando os escritos de Freud finalmente passaram a estar disponíveis em traduções concorrentes e direto do alemão. Tivemos que esperar inacreditáveis 120 anos.
3) Obra rara e não publicada no país
Uma ausência notável no texto diz respeito ao acesso às obras raras ou não publicadas no país – e que deveria estar previsto no artigo 46. O acesso a esse tipo de obra é um problema tão notável que a norma interpretativa da USP sobre reprografia autoriza a cópia nestes casos. De novo, para evitar ambigüidades, deveríamos ter uma previsão específica e inequívoca para esse tipo de obra.
4) Reprografia (Xerox)
O projeto de lei cria um capítulo específico para disciplinar a reprografia, tentando por fim ao intenso e desgastante litígio entre editores e a comunidade universitária. No entanto, a redação do artigo tem muitas incoerências e o resultado pode ser muito prejudicial aos estudantes. Embora o corpo do artigo 88A só se refira à reprografia “com finalidade comercial ou intuito de lucro” a redação do inciso II confunde as coisas ao mencionar a “reprodução mediante pagamento”. Ao final de contas, de quê trata o artigo, da reprodução comercial ou da reprodução mediante pagamento? As duas coisas são diferentes. Posso muito bem ter reprografia nas universidades, realizada mediante pagamento, mas sem “finalidade comercial ou intuito de lucro”, apenas cobrando para cobrir os custos do serviço prestado. Se a redação esclarecer essa ambigüidade, resta ainda outro grande problema. O inciso II estabelece que as copiadoras deverão “obter autorização prévia dos autores ou titulares das obras protegidas ou da associação de gestão coletiva que os representem”. Ora, nada disso é realmente necessário. Os editores já têm uma associação que, em tese, foi constituída para esta função que é a ABDR. Ela já pode, nos marcos da lei atual, arrecadar direitos autorais nas copiadoras (o que, aliás, já existiu no passado), mas ela simplesmente não quer autorizar o xerox recolhendo direitos autorais. Por que deveríamos esperar que ela passasse a querer agora? Parece evidente que a ABDR vai travar esse mecanismo – e a ameaça de licenciamento compulsório não vai ter qualquer efeito, porque este tipo de licenciamento, pelas suas próprias características, deve ser excepcional e não pode ser aplicado a um grupo muito grande de obras. Por fim, ainda que todos esses problemas fossem resolvidos, devemos pensar se realmente é necessário que os nossos estudantes paguem direitos autorais pelo Xerox. O Xerox não concorre com o mercado de livros (o Xerox é fracionado e perecível) e, portanto, não causa prejuízos comprovados a esse setor. Além disso, o adicional para o pagamento de direitos autorais deve onerar nossos estudantes, em especial os mais pobres, que já têm um orçamento muito reduzido. A estimativa para um estudante de humanidades é do pagamento de cerca de 80 reais anuais de direito autoral, o suficiente para comprar 2 ou 3 livros integrais.
Apesar destes problemas, as virtudes compensam de longe os defeitos do projeto. Precisamos, neste momento, ampliar a discussão da lei de direitos autorais e trabalhar por mudanças na consulta pública e, em seguida, para sua rápida tramitação no legislativo.

* Agradeço a Maria Carlotto, Arakin Monteiro, Denise Bottmann e Carolina Rossini pelos comentários e sugestões. Eventuais erros são exclusivamente meus.

** Pablo Ortellado é professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP, coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai-USP – www.gpopai.usp.br) e membro da Rede pela reforma da lei de direito autoral (www.reformadireitoautoral.org).
Fonte: Reforma de Lei de Direito Autoral.